A última vez em que Dilma Rousseff foi vista
pessoalmente em um comício de 1º de maio, Dia do Trabalhador, foi em
2010. De lá para cá, a presidente celebrou o feriado dos trabalhadores
em pronunciamentos na televisão.
Pelo menos até o último domingo. A
uma plateia esvaziada no vale do Anhangabaú, em São Paulo, a presidente
reapareceu e anunciou aumento de 9% no Bolsa Família, construção de 25
mil moradias por cooperativas populares pelo Minha Casa, Minha Vida,
prorrogação do programa Mais Médicos por mais três anos, ampliação da
licença paternidade de cinco para 20 dias para funcionários públicos,
correção de 5% na tabela do Imposto de Renda e um novo programa de
estímulo à agricultura familiar.
Mas não foi só. Desde março
passado, Dilma vem divulgando decretos aguardados por boa parte de seu
eleitorado - para quem a presidente não vinha cumprindo o programa
político que venceu as últimas eleições. Entre os principais anúncios
estão desapropriações para reforma agrária, demarcação de terras
indígenas e quilombolas e políticas afirmativas para transexuais.
A
pergunta que ecoa em redes sociais, corredores do Congresso e reuniões
sociais por todo o país é uma só: por que isto acontece a esta altura do
campeonato? A BBC Brasil conversou com parlamentares, entidades,
ativistas e cientistas políticos em busca de respostas.
"Libertação",
"desespero", "legado" e "dívida" foram as palavras mais ouvidas pela
reportagem quando o assunto é a suposta guinada tardia à esquerda do
governo.
'Libertação' do Congresso
Parte dos entrevistados
alega que a aprovação do impeachment na Câmara dos Deputados - com o
consequente distanciamento, do governo, de bancadas conservadoras como
as da bala, evangélica e ruralista - teria permitido à presidente
retomar as políticas sociais historicamente defendidas pelo PT.
É o
que defendem deputados petistas como Padre João (MG), que atua em
defesa de povos tradicionais e da reforma agrária, e Erika Kokay (DF),
uma das principais defensoras dos direitos de mulheres e da população
LGBT na Câmara.
"Como o próprio setor ruralista fez a opção de
ruptura, afastando o grupo mais conservador e moralista deste governo de
coalizão, a presidenta ficou mais à vontade, mais livre para atender a
esta dívida social", disse Padre João à BBC Brasil, se referindo
principalmente à desapropriação de terras para reforma agrária e
demarcações para índios e quilombolas.
De janeiro de 2015 a março
de 2016, o número de áreas desapropriadas pelo governo federal para a
reforma agrária foi zero. Durante todo o primeiro governo Dilma, de 2011
a 2014, foram desapropriadas 216 terras - menos de 10% do total
realizado no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso (2.223 áreas, de
1995 a 1998).
No último dia 1º de abril, porém, a presidente anunciou, de uma vez, 21 desapropriações, somando 22 mil hectares.
No
último dia 28, Dilma assinou um decreto que permite a servidoras
públicas travestis e transexuais usarem os nomes que escolheram para si
mesmas em crachás, folhas de ponto e sistemas dos locais onde trabalham.
Em
2011, entretanto, a presidente havia vetado a distribuição de um kit
anti-homofobia em escolas, alegando que "não seria permitido a nenhum
órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais". A afirmação, fruto
de pressão de bancadas religiosas, até então apoiadoras do governo no
Congresso, chocou movimentos sociais à época.
"Em alguns momentos,
esta pauta não foi entendida como prioritária pelo governo e, graças a
deputados fundamentalistas, acabou se transformando neste ódio que se
expressa nas ruas", disse a deputada federal Erika Kokay (PT-DF).
"Mas
não é verdade que o governo não avançou nada e está lançando tudo neste
momento de crise", prossegue a deputada. "Nós avançamos muito e é
justamente este avanço que provocou a reação destas vozes fascistas, que
antes estavam caladas pelo peso da democracia e agora se expressam com
brutalidade nesta ruptura que o impeachment representa".
'Desespero' X 'legado'
Marta
Suplicy (PMDB-SP) e Paulinho da Força (Sd-PR), dois ex-apoiadores do
governo, hoje articuladores ferrenhos do impeachment da presidente,
definiram como "desespero" o que chamam de políticas de última hora.
As
afirmações foram feitas durante as celebrações do 1º de maio da Força
Sindical (entidade opositora à Central Única dos Trabalhadores, que
defende o governo), quando 12 carros – cuja soma chega a quase R$ 1
milhão - foram sorteados aos presentes.
Para o deputado Mendonça
Filho (DEM-PE), cotado para o ministério das Comunicações do governo
Temer, as medidas sugerem populismo. "Nessa última semana de governo
petista ouviremos dezenas de medidas populistas. O único objetivo de
Dilma é prejudicar o futuro governo", disse.
O cientista político Renato Perissonoto, da Universidade Federal do Paraná, também classifica o gesto como "desespero".
"Estou
em espectro diametralmente oposto ao de políticos como Paulinho da
Força, mas também entendo como desespero", disse. "Dilma vem sendo
cobrada por estas políticas há muito tempo. A agora dá esta guinada em
uma situação em que precisa contar com uma adesão motivada da sua base e
deixar uma ideia de legado social a seu governo."
"Todo mundo que
defende a permanência da Dilma o vinha fazendo com desânimo, porque o
recuo do governo com o ajuste fiscal, o pré-sal e outras políticas à
direita foi muito grande desde as eleições", completou.
'Dívida'
Nas últimas semanas, o governo avançou em 14 processos de demarcação
de Terras Indígenas, procedimentos que foram praticamente paralisados
por boa parte da gestão Dilma. Uma das áreas com demarcação iniciada foi
a Terra Indígena Sawre Muybu, do povo munduruku, que fica à margem do
rio Tapajós e pode ser parcialmente inundada pela planejada hidrelétrica
de São Luiz do Tapajós – à revelia de indígenas e ambientalistas
contrários à usina.
No mesmo dia em que a Funai (Fundação Nacional
do Índio, órgão vinculado ao Ministério da Justiça) reconheceu a
ocupação tradicional do território (primeira etapa para garantir a
demarcação do território indígena na área), o Ibama suspendeu o
licenciamento da hidrelétrica, alegando " inviabilidade do projeto sob a
ótica do componente indígena". A Constituição impõe uma série de
restrições à construção de hidrelétricas em áreas indígenas.
Para
Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA (Instituto Socioambiental), as
decisões "acabam chamando a atenção porque o governo não fez nada em
seis anos". "Não acho que seja nada revolucionário." Já Sônia Guajajara,
coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), diz
que as últimas iniciativas do governo atendem demandas antigas do
movimento. "O governo finalmente entendeu que fez as alianças erradas e
que deveria ter governado para o povo, e não para as elites políticas",
diz.
Ambos atribuem as ações principalmente ao novo ministro da
Justiça, Eugênio Aragão, empossado em março. Para Guajajara, ele soube
convencer Dilma a destravar os processos e teve mais iniciativa que seu
antecessor, o atual advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo.
Em
discurso recente, Aragão admitiu falhas na política indigenista do
governo e as associou a alianças que o Planalto fez no Congresso "para
garantir estabilidade".
No início do mês, Dilma assinou quatro
decretos de regularização de territórios quilombolas e lançou um edital
para o financiamento de ações em prol de comunidades tradicionais e da
igualdade racial.
Para Célia Cristina da Silva Pinto, da
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas (Conaq),
as decisões são bem-vindas, mas "o que estamos recebendo agora não é
nada perto dos anos que ficamos sem ter respostas".
Estima-se que
cerca de 90% dos territórios quilombolas ainda não tenham sido
regularizados. A coordenadora da Conaq diz que só no Maranhão, onde ela
vive, há cerca de 400 processos de regularização abertos e apenas 50
concluídos.
Líderes de organizações indígenas e quilombolas
disseram ainda à BBC Brasil que, ao anunciar as últimas medidas, o
governo tenta se reaproximar dos grupos para que eles sigam nas ruas.
Segundo eles, Dilma acredita que a mobilização ajudará a definir como o
impeachment será registrado na história e quer contar com o apoio dos
movimentos nos desdobramentos do processo.
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