Semelhanças com o que vivemos neste julho de 2014 não será mera coincidência. Afinal, tudo se repete na vida, sempre
Cidades | Em 20/07/14 às 17h40, atualizado em 20/07/14 às 17h42 | Por Roberto Cavalcanti
Decidi
hoje abrir mão da coluna. Serei substituído por ninguém menos do que
Carlos Drummond de Andrade e sua singular capacidade de transformar
palavras em arte.
Drummond tinha o dom de nos fazer enxergar,
através de seus escritos de poeta, o caldeirão emocional que ferve a
nossa volta - vapores sociais que a maioria de nós, com nossos olhos
menos sensíveis, aparentemente nascemos desprovidos da habilidade para
captar.
E as emoções estavam em ponto de ebulição naquele julho de
1982, após a eliminação da talentosa Seleção Brasileira comandada por
Telê Santana, Zico, Júnior e Socrates, em um surpreendente 3 a 2 para a
Itália.
Semelhanças com o que vivemos neste julho de 2014 não será mera coincidência. Afinal, tudo se repete na vida, sempre.
O texto, que reproduzo abaixo, me foi enviado pelo amigo Arlindo Almeida.
Caro Roberto,
Relendo
a crônica de Carlos Drummond de Andrade me lembrei de você, otimista
incorrigível e amante da vida. Depois de 32 anos parece que foi escrita
ontem.
Cordial abraço,
Arlindo
Perder, Ganhar, Viver – Carlos Drummond de Andrade
Vi
gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo perdido; vi
homens e mulheres pisando com ódio os plásticos verde-amarelos que até
minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam
por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças festejando a
derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus corações
estavam programados para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso
da Seleção xingado de bandido e queimado vivo sob a aparência de um
boneco, enquanto o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era
declarado o último dos traidores da pátria; vi a notícia do suicida do
Ceará e dos mortos do coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor
dissolvida em uísque escocês da classe média alta e o surdo clamor de
desespero dos pequeninos, pela mesma causa; vi o garotão mudar o gênero
das palavras, acusando a mina de pé-fria; vi a decepção controlada do
presidente, que se preparava, como torcedor número um do país, para
viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional, depois de
curtir tantas desilusões de governo; vi os candidatos do partido da
situação aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso
para a campanha eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na
mesma perplexidade diante da catástrofe que levará talvez o povo a se
desencantar de tudo, inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores
e vendedores de bandeirinhas, flâmuIas e símbolos diversos do esperado e
exigido título de campeões do mundo pela quarta vez, e já agora
destinados à ironia do lixo; vi a tristeza dos varredores da limpeza
pública e dos faxineiros de edifícios, removendo os destroços da
esperança; vi tanta coisa, senti tanta coisa nas almas…
Chego
à conclusão de que a derrota, para a qual nunca estamos preparados, de
tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é afinal
instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória estabelece o
jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se uma
sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de
vitórias traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez
dos estados pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade
atuantes. Perder implica remoção de detritos: começar de novo.
Certamente,
fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo. Mas será
suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível? Não é
mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até mesmo ao absurdo,
um poder de transformação das coisas, capaz de anular os cálculos mais
científicos? Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos míticos,
apenas para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade
exclusiva e inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso? Na
realidade, nós fomos lá pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e
do risco, e não para recolher um objeto roubado. A verdade é que não
voltamos de mãos vazias porque não trouxemos a taça. Trouxemos alguma
coisa boa e palpável, conquista do espírito de competição. Suplantamos
quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos para a quinta. A Itália
não tinha obrigação de perder para o nosso gênio futebolístico. Em
peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou. Paciência, não
vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma experiência,
como tantas outras, da volubilidade das coisas.
Perdendo,
após o emocionalismo das lágrimas, readquirimos ou adquirimos, na
maioria das cabeças, o senso da moderação, do real contraditório, mas
rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida. Não somos
invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão a
grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se. Eu
gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus jogadores,
reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não
utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria
enfático e meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos
em sua doçura solidária. Ora, o Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A
Copa do Mundo de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o
Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós
todos.
E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?
Fonte: PORTAL CORREIO
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