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/ Auxílio emergencial: ‘Sem doações, meus filhos passariam fome’: o fim do benefício na cidade brasileira com mais dependentes do recurso
Governo federal decidiu não prorrogar o
repasse de dinheiro para quase 68 milhões de pessoas, e muitos moradores de
cidades como Amapá (AP) agora veem aumentar o sofrimento com a fome, o
desemprego e a inflação.
“Só adulto
aguenta porrada. É muito complicado pra criança. Não sou só eu que estou
sofrendo. Tenho três filhos. A gente recebe um pouco de feijão daqui, farinha
dali, um frango pra comer na semana. Familiares vão ajudando. Mas, ontem, eu
jantei queijo. O queijo que eu peguei fiado para vender e sobreviver”, relata o
vendedor ambulante Josielson Cardoso, de 33 anos.
Na semana passada, ele
não conseguia parar de chorar na frente dos filhos quando lhe pediram dinheiro
para comprar merenda. “É uma dor muito doída quando nossos filhos pedem e não
temos o que dar. Antes a gente tinha o auxílio emergencial, mas agora acabou.
E, sem as doações que a gente consegue, eles estariam passando fome.”
Antes da pandemia, ele
conseguia lucrar em torno de R$ 1.000 por fim de semana como vendedor ambulante
de bebidas na porta de festas e boates. Mas a renda caiu a zero quando a
Prefeitura de Amapá (a 300km de Macapá, capital do Estado de mesmo nome), onde
mora com a família, proibiu eventos com aglomerações para evitar o espalhamento
do coronavírus.
A doença infectou 1 em
cada 9 habitantes da cidade de Amapá, segundo dados oficiais.
O auxílio de R$ 600,
única renda da casa de Josielson em grande parte de 2020, chegou a ajudar a
comprar comida, mas não bastava. As dívidas cresceram. A mulher dele passou um
mês doente com covid-19. E ele precisou vender a moto e um freezer que usava para
gelar as bebidas que comercializava.
E o que era ruim ficou pior. O governo federal decidiu não prorrogar o repasse
de dinheiro para quase 68 milhões de pessoas a fim de aliviar o impacto da
pandemia. Então, muitas pessoas agora enfrentam fome, desemprego e inflação.
No ano passado, Amapá
liderou o ranking de cidades brasileiras que mais receberam o auxílio. Das 10
cidades com mais beneficiários, 8 estão na região Norte do país e 2, no
Nordeste.
Ao todo, 82% da população
amaparina recebeu auxílio no ano passado. Para a prefeitura, o número
surpreende e sugere três coisas: fraudes, erro de cadastro ou um contingente de
necessitados fora do radar.
Amapá tem um território
cinco vezes maior que a cidade de São Paulo e uma população que não chega a um
milésimo da paulistana. A geração de emprego se resume ao serviço público, à
pesca, à agricultura familiar e ao comércio, na maioria informal.
A dependência local de
programas sociais não é novidade por lá. Segundo a secretária de Assistência
Social, Liliane Dias, 40% da população já dependia de benefícios sociais antes
mesmo da pandemia.
Mas Josielson faz parte
de um grupo social hoje dentro de num limbo assistencial, porque não recebia
benefícios antes da pandemia e acabou dependendo completamente do auxílio emergencial
porque sua atividade profissional ficou inviável.
Wendell
Silva, 38, se apresentava como DJ e promovia festas em Amapá antes da pandemia
— Foto: Acervo pessoal
Não há sinal de melhora:
o auxílio emergencial não foi renovado, os preços de alimentos e habitação
estão aumentando e a pandemia de covid-19 continua se espalhando. Muitos agora
dependem basicamente de doações, como as cestas básicas distribuídas pela
prefeitura.
É o caso de Wendell
Silva, de 38 anos, que não consegue trabalhar desde março de 2020 porque a
Prefeitura de Amapá proibiu eventos públicos com aglomeração, incluindo festas
fechadas ou nas praças da cidade, como o aniversário do município.
Ele atua há 13 anos
produzindo e tocando como DJ em festas e eventos que costumam reunir de 400 a
1000 pessoas em torno de música eletrônica, funk, baile da saudade ou tudo
misturado.
Obeso e fumante, ele
perdeu a avó e amigos para a doença em 2020. “Meu organismo não é mais de
moleque, mas não tinha opção, precisei ir trabalhar em outras cidades, mesmo
com o risco de ficar doente. E a gente vai se virando, grava um CD aqui e ali,
vende camisa do time de futebol da cidade.”
Mas a conta não fecha. O
dinheiro do auxílio emergencial servia para comprar comida para a casa de sua
mãe, onde mora com a mulher há anos depois de a própria casa para sua filha
conseguir fazer faculdade na capital Macapá. “Sem a ajuda de minha família eu
não conseguiria comer e minha filha não conseguiria mais estudar.”
Ele costumava defender a
decisão municipal de proibir aglomerações para evitar que o contágio por
covid-19, mas diz não compreender mais o porquê da medida ao ver tanta gente se
aglomerando nas ruas e no comércio sem máscara. “Tem fila em todo canto e
ninguém se protege ou se importa. Desse jeito era pra voltar as festas de vez,
então. Tem um monte de família que depende delas para ganhar dinheiro e
sobreviver.”
Onde se
recebia mais auxílio emergencial
O pagamento do auxílio emergencial
começou em abril de 2020, sendo R$ 600 ou R$ 1.200 para mães chefes de família.
Depois de cinco parcelas, o valor caiu pela metade. O último dos repasses, de
R$ 300 ou R$ 600, ocorreu em dezembro.
Estima-se que o custo dos
pagamentos para 68 milhões de pessoas tenha chegado a R$ 300 bilhões, quase dez
vezes o valor do Bolsa Família, que beneficia cerca de 14 milhões de famílias
com repasse médio de quase R$ 200.
Segundo tabulação feita
pela BBC News Brasil, com base em dados do Portal da Transparência federal, do
IBGE e da Justiça Eleitoral, Amapá era a cidade com mais taxa de beneficiários
por população estimada, cerca de 82% — a secretária de Assistência Social disse
ter analisado a lista de nomes de pessoas que receberam o auxílio e detectado
que havia “vários ali que nem moram na cidade”.
Nas outras nove cidades
mais dependentes do auxílio emergencial, na razão entre beneficiários por
habitantes ou eleitores, o benefício foi pago para uma parcela que variou de 61%
a 79% da população: Pacaraima (RR), Assis Brasil (AC), Iranduba (AM), Beruri
(AM), Caroebe (RR), Campo Largo do Piauí (PI), Gurupá (PA), Prainha (PA) e
Extremoz (RN).
Mas, por questões
orçamentárias, o presidente Jair Bolsonaro decidiu encerrar os pagamentos. O
governo federal diz estudar alternativas ao programa, que teve um impacto
positivo direto na popularidade do presidente, mas não há qualquer medida
concreta no horizonte.
Inflação e
letargia
O
auxílio emergencial conseguiu conter o avanço da pobreza por um tempo, atenuar
o impacto do desemprego crescente e da perda de renda de trabalhadores
informais e até ampliar o poder de compra de algumas famílias.
A injeção desse volume de
dinheiro, no entanto, teve algumas consequências negativas. A principal delas é
a inflação, que teve a maior alta em cinco anos (4,52%). Alimentos e bebidas
subiram 14%, o pior aumento desde 2002. O óleo de soja, por exemplo, dobrou de
preço.
Por outro lado, a pobreza
extrema deve atingir, em janeiro, uma taxa entre 10% e 15% da população
brasileira, de acordo com projeção calculada pelo economista Daniel Duque,
pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio
Vargas), a pedido da BBC News Brasil.
Isso significa que a
proporção de brasileiros vivendo na extrema pobreza (ou seja, com menos de US$
1,90 por dia) pode dobrar em relação a 2019, quando a taxa foi de 6,5% da
população — ou 13,7 milhões de pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE).
Para a pobreza (quem vive
com menos de US$ 5,50), Duque projeta que a taxa ficará entre 25% e 30% no
começo do ano que vem. Em 2019, ela foi de 24,7%, ou mais de 51 milhões de brasileiros.
A situação nos pequenos
municípios se agrava ainda mais porque a arrecadação municipal tem caído junto
com a redução da atividade econômica, o que levou a corte de custos e
investimentos.
“Vou precisar renovar o
decreto de situação de emergência por mais seis meses. É no mínimo dois anos
dessa letargia por causa da pandemia. E nem vai voltar ao normal com a
vacinação dos grupos prioritários, ainda mais com a ameaça dessa mutação do
vírus”, afirmou o prefeito de Amapá, Carlos Sampaio (DEM), reeleito em 2020.
Pandemia
do coronavírus levou o governo a criar o auxílio emergencial para proteger a
população mais vulnerável
Sobre os moradores que
não têm mais auxílio e não conseguem trabalhar, Sampaio afirmou que “morrer
elas não vão, e precisarão se reinventar.”
A prefeitura diz dialogar
com o governo do Estado e congressistas para tentar reverter o fim do auxílio
emergencial ou ampliar os recursos para a assistência social dos mais
necessitados.
“Só sobrevivo porque
amigos ajudam com comida”, conta com dificuldade Robson Cambraia, que já não se
lembra mais da idade. “Pode colocar que eu sou bem idoso.” Ele chegou a receber
cesta básica da prefeitura, mas “depois do tempo de política, de eleição, os
políticos somem tudo”.
Hoje, com um quadro de
hanseníase, não consegue executar nenhum serviço, pescar ou plantar para comer.
“Não sei o que vai ser de mim.”
Em entrevista à BBC News
Brasil em dezembro de 2020, o presidente da Central Única das Favelas (Cufa),
Preto Zezé, disse que um dos principais problemas era a falta de perspectiva.
"Até aqui, você não
teve saque, quebra-quebra, nem nada, mas a situação se agravando, meu Deus do
céu, não gosto nem de pensar nesse cenário. Aí tem uma questão séria. O mundo
político, as elites econômicas do país, ou elas compartilham as riquezas nesse
momento ou nós vamos todos compartilhar as tragédias que a concentração dessa
riqueza gera."
Auxílio emergencial: ‘Sem doações, meus filhos passariam fome’: o fim do benefício na cidade brasileira com mais dependentes do recurso
Reviewed by Alexandre Almeida
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sábado, janeiro 23, 2021
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