As decisões do STF que podem mudar o impeachment




O Supremo Tribunal Federal (STF) está reunido nesta quarta-feira em sessão histórica para analisar como deve tramitar no Congresso o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff.
Há exatas duas semanas, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, tomou a polêmica decisão de dar início ao trâmite que decidirá sobre a possível realização de um julgamento que pode cassar Dilma.
Já a primeira etapa do procedimento – a eleição dos 65 deputados que formarão uma Comissão Especial para emitir uma parecer recomendado ou não a abertura de fato de um processo – foi alvo de intensa disputa política entre governo e oposição, culminando em uma tensa votação no plenário da Câmara na terça-feira da semana passada, com direito a urnas quebradas e agressões de ambos os lados.
O principal ponto da polêmica foi a decisão de Cunha de realizar uma votação secreta para definir qual chapa de deputados levaria a maioria das vagas na comissão, se a governista ou a oposicionista. A percepção era que o voto fechado permitiria a parlamentares da base governista trair o governo sem risco de retaliação. O resultado foi que a chapa oposicionista levou a disputa com 272 votos contra 199 em apoio à governista.
Imediatamente após a votação, parlamentares da base do governo acionaram o STF, questionando a legitimidade de uma votação secreta. Diante da gravidade da questão, o ministro Edson Fachin decidiu suspender o processo e levar a questão ao plenário do Supremo, para que os onze ministros possam decidir coletivamente.
A previsão é de que na sessão de hoje os ministros decidam não só se a votação da semana passada deve ser anulada e realizada novamente com voto aberto, mas também esclareçam outras polêmicas do trâmite de impeachment, estabelecendo um rito claro de como deve ocorrer o processo.
Mas por que é o STF que decide isso?
Em resumo, é o Supremo que tem a função de garantir o respeito à Constituição Federal, o conjunto de leis que prevê, entre várias outras coisas, quais são os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, como os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário devem funcionar e, de modo geral, como funciona um processo de impeachment.
Tudo que é decidido no Congresso e todas as demais leis aprovadas por ele devem respeitar normas e princípios previstos na Constituição. Cabe ao Supremo avaliar se isso está de fato ocorrendo e intervir em caso contrário, por exemplo anulando eventuais decisões dos parlamentares que julgue inconstitucional.
A análise do Supremo inclusive se estende sobre leis anteriores a 1988. Cabe a ele analisar que trechos das leis antigas que seguem em vigor estão de acordo com a Constituição de 1988 e quais perderam validade.
A lei que detalha o procedimento de impeachment é de 1950 – a análise central que o Supremo fará hoje é justamente sobre o conteúdo dessa lei.
"O processo de impeachment é uma função atípica do Congresso, pois nesse caso está julgando um suposto crime de responsabilidade e não exercendo sua função principal de legislar", observa Pedro Abramovay, ex-secretário Nacional de Justiça no governo Lula.
Por isso, é natural que o Supremo interfira, ressalta: "O impeachment não é uma decisão apenas política, é também jurídica, feita por um órgão que não está aparelhado para isso. Então, a forma como será tomada essa decisão, como será o processo, tem que ser estabelecida pelo Supremo".
O presidente da Associação Juízes para a Democracia, André Augusto Bezerra, considera a ruim a "judicialização da política". No caso do impeachment, porém, diz que é muito importante que o Supremo assuma o papel de "guardião da legalidade".
"Veja bem, os direitos que estão em jogo são de suma importância. O impeachment está previsto na Constituição, mas é uma medida excepcional. Tem que tomar cuidado. Ele pode levar à presidência da República alguém que não foi eleito para isso", ressalta.

Impeachment de Collor como referência?

Mas se o impeachment do Collor ocorreu em 1992, portanto regido já pela Constituição de 1988, por que tantas dúvidas e questionamentos sobre o trâmite a ser adotado? Não bastaria replicar o procedimento realizado em 92?
Naquela ocasião, o Supremo também foi acionado a se posicionar em várias questões. Ele, por exemplo, garantiu um tempo mais amplo de defesa para Collor do que estava sendo dado pela Câmara.
Para especialistas, não é possível aaplicar hoje a decisão de um Supremo no caso do impeachment de Collor© Copyright British Broadcasting Corporation 2015 Para especialistas, não é possível aaplicar hoje a decisão de um Supremo no caso do impeachment de Collor
No entanto, os juristas consideram natural que haja de novo intensa disputa em torno do procedimento, dada a sua gravidade. E quando houve o impeachment do Collor, ressaltam, a Constituição era muito recente. Agora, após quase três décadas de sua promulgação, a interpretação em torno dela pode evoluir, o que abre espaço para novas consultas ao Supremo.
"A visão sobre a Constituição mudou, hoje ela é levada mais a sério do que em 92, quando era um texto muito novo. Isso tem que ser ponderado nesse processo", diz Abramovay, atualmente diretor para a América Latina da Open Society Foundation.
A própria substituição dos ministros ao longo dos anos influencia nesse processo. Na sua percepção, os ministros atuais entendem que o Supremo deve ter papel mais ativo ao intervir nas decisões do Poder Legislativo, caso entendam que a Constituição está sendo contrariada.
"Não dá para simplesmente aplicar hoje a decisão de um Supremo no caso Collor que era praticamente inteiro formado por ministros indicados antes da Constituição de 88", diz.
Um exemplo disso é justamente a questão do voto fechado. Segundo Oscar Vilhena Vieira, professor de direito constitucional da FGV-SP, a eleição para escolha da Comissão Especial que deu o parecer no caso de Collor foi secreta.
No entanto, nota ele, de lá pra cá houve uma evolução do debate jurídico e agora prevalece o entendimento de que todas as votações no Congresso devem ser abertas, salvo nos casos excepcionais em que está expressamente previsto na Constituição que o voto seja fechado – e a eleição para a Comissão Especial de impeachment não está entre elas.
Outro ponto que o Supremo deve avaliar hoje é se, no caso do plenário da Câmara decidir a favor da abertura de processo de impeachment, se isso implica no imediato início do julgamento pelo Senado, com afastamento automático de Dilma do cargo de presidente, ou se a decisão da Câmara deve ser submetida à análise dos senadores para ser rejeitada ou referendada – e só então ser dado prosseguimento ao processo dentro do Senado.
O governo Dilma Rousseff, a Procuradoria-Geral da República e o presidente do Senado, Renan Calheiros, encaminharam pareceres ao Supremo argumentando que a decisão da Câmara precisa ser submetida ao crivo dos senadores – casa em que Dilma tem uma base mais fiel. Já Eduardo Cunha argumenta que isso não é necessário, pois no caso de Collor houve apenas uma votação simbólica no Senado dando seguimento à decisão da Câmara.
Como o impeachment de uma presidente eleita democraticamente é uma decisão muito extrema, é natural que a lei "dificulte ao máximo esse processo", nota Vieira. Por causa disso, o professor da FGV acredita que o Senado deve sim votar em plenário se recebe ou não a denúncia aceita na Câmara.
"Esse procedimento foi atropelado no caso do Collor porque havia consenso das lideranças (a favor da abertura do processo). Mas o procedimento correto é que isso seja submetido à votação no Senado. Como não há previsão de qual deve ser o quórum, a decisão deve se dar por maioria simples", acredita.

Dos militares ao Supremo

O processo de redemocratização após o fim da Ditadura Militar (que governou o país entre 1964 e 1985) e a promulgação de uma nova Constituição Federal bastante ampla em 1988 estão por trás do processo de fortalecimento do papel do STF, afirmam juristas.
O Supremo Tribunal Federal foi criado com esse nome logo após a proclamação da República em 1889, em substituição ao Supremo Tribunal de Justiça que funcionava durante o Império. Desde então, sofreu modificações na sua operação e também intervenção de governos autoritários, como o Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas e a Ditadura Militar, que aposentaram alguns ministros.
Vieira observa que, desde a Proclamação da República, os militares exerceram "o poder moderador" durante os momentos de polarização e crise política, apeando e nomeando presidentes, até que em 1964 tomaram de fato o poder para si.
"Passaram de moderadores para usurpadores do poder", resume.
"O processo de impeachment é uma função atípica do Congresso", afirma Pedro Abramovay, ex-secretário Nacional de Justiça no governo Lula© Copyright British Broadcasting Corporation 2015 "O processo de impeachment é uma função atípica do Congresso", afirma Pedro Abramovay, ex-secretário Nacional de Justiça no governo Lula
Com a redemocratização a partir de 1985 e promulgação da Constituição de 1988, o "poder moderador" passou então para o Supremo Tribunal Federal. Ele nota que hoje os apelos por um golpe militar se restringem a um grupo muito pequeno da população, o que é reflexo do amadurecimento da nossa democracia.
"Há uma mútua maturidade. Os civis estão mais maduros de não ir buscar uma aliança com os militares e os militares também deixaram de se seduzir pelo canto da sereia dos civis golpistas", observa.
Mas um ponto que gera controvérsia entre juristas é se o STF poderia ir além das decisões formais sobre como deve tramitar o impeachment e tomar uma decisão de mérito sobre se as irregularidades fiscais cometidas no governo Dilma seriam suficientes para justificar um impeachment.
Essa questão é mais delicada pois poderia significar uma interferência do Judiciário na função do Congresso de julgar o processo de impeachment. Esse ponto, no entanto, não está previsto para ser analisado hoje – deve ficar para um próximo capítulo da disputa, caso tal questionamento seja levado ao Supremo.

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