Permeadas de mentiras e desinformação, campanhas
pelo fim do benefício ganham intensidade na internet e distorcem sua
real proposta. Confira os mitos e verdades por trás do direito que, na
verdade, é recebido pelas famílias de apenas 8% dos presos
Por Ivan Longo
Está em curso nas redes sociais, principalmente por meio de correntes
no Whatsapp, uma campanha pelo fim do auxílio-reclusão, um benefício
previsto em lei desde 1991. De forma odiosa e repleta de desinformação, a
campanha convoca a população a reivindicar a suspensão deste direito
sob a alegação de que o Estado estaria beneficiando o “criminoso” em
detrimento da “vítima”. Entre outras falácias, chega-se a afirmar que o
valor é pago diretamente ao criminoso ou ainda que o benefício
multiplica-se de acordo com o número de filhos do preso ou da presa.
Essas inverdades, além de já serem facilmente abraçadas pelo senso
comum devido aos preceitos morais entre “bem” e “mal” que carregam,
representam um risco ainda maior de disseminação quando acatadas por
parlamentares, que, de forma ideológica, se apropriam da sensibilidade
do tema para impor uma agenda política que vai contra direitos.
A deputada Antônia Lúcia (PSC-AC), por exemplo, apresentou uma
Projeto de Emenda Constitucional – que aguarda votação na Câmara dos
Deputados – em agosto de 2013 propondo o fim do auxílio sob a
justificativa de que “é mais justo amparar a família da vítima do que a
família do criminoso”, omitindo tudo o que, de fato, gira em torno do
benefício.
A discussão e as campanhas de ódio contra o auxílio-reclusão voltam à tona agora principalmente por conta da enquete lançada recentemente no site da Câmara dos Deputados que
pede o voto da população pelo fim do auxílio com base na proposta da
deputada. Omitindo, de fato, como funciona o benefício e apenas
utilizando o argumento moral do “bandido” e “vítima”, a enquete já conta
com mais de 1 milhão e meio de votos, sendo 95,5% deles favoráveis ao
fim do direito.
Não, não sai do seu bolso
Um dos primeiros pontos sobre o auxílio que deve ser salientado é que
não se trata de uma assistência, e sim de um benefício previdenciário,
mais ou menos nos mesmos moldes de uma pensão por morte. Ou seja, os
impostos pagos pelos demais cidadãos não são utilizados, em nenhuma
hipótese, para pagar benefícios a internos ou internas do sistema
prisional.
O valor que a família recebe está condicionado à contribuição do
preso ou da presa ao INSS, sendo que a família do beneficiário tem que
ser de baixa renda, com teto de auxílio de R$ 1.089. Como o cálculo é
feito com base na média de todos os salários do preso ou da presa, o
valor do benefício, na maior parte dos casos, não passa de um salário
mínimo.
O fato do benefício estar associado ao INSS explica por si só a sua
razão de existir, como qualquer outro direito ligado à questão
previdenciária.
“A ideia é ajudar a família a se manter a partir do princípio do
infortúnio. Quando você paga a previdência social é por seguridade, você
paga para quando não puder prover o sustento, receber. E é isso que
acontece, quando a pessoa vai presa e não tem condições de sustentar a
família os dependentes passam a receber”, explica o advogado Anderson
Lobo da Fonseca, que é pesquisador do programa Justiça Sem Muros do
Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).

Um
dos memes que circulam entre as campanhas pelo fim do auxílio-reclusão.
A imagem só não explica que o salário mínimo é pago à maior parte dos
brasileiros e que menos de 10% da população carcerária tem acesso ao
benefício. Faltou ainda a informação de que o valor de R$ 971 representa
praticamente o teto do auxílio, que deve ser dividido entre todos os
membros da família. (Foto: Reprodução)
Menos de 10% de toda a população carcerária é beneficiária
Atualmente o sistema carcerário brasileiro é composto por,
aproximadamente, 581 mil pessoas. Destas, por conta das restrições
apresentadas e das burocracias para conseguir estar nas condições,
apenas 55 mil recebem o auxílio. Ou seja, 8% do total.
“É importante destacar que no sistema penal, sendo seletivo como é
hoje, muitos presos acabam não tendo condição de segurados. Trata-se de
uma minoria que recebe. A maior parte é composta de jovens, pobres,
negros e favelados que sequer tiveram um emprego para contribuir com a
previdência”, destaca Paulo Malvezzi, advogado e consultor jurídico da
Pastoral Carcerária.
O advogado Anderson Lobo, do ITTC, ainda ressalta outro dado que desconstrói a tamanha grita do “eu que tô pagando”.
“Se você pegar no orçamento de benefícios do INSS, o que é destinado ao auxílio-reclusão representa menos de 0,1% do total. [Acabar com o auxílio] é uma proposta puramente ideológica”, analisa.
As primeiras vítimas: as mulheres
Um dado que chama a atenção é que, como se já não bastasse o fato de
que menos de 10% da população carcerária recebe o auxílio, há um fator
considerável da questão de gênero. Dessa minoria presa e que tem direito
ao auxílio, ao contrário do que prega o senso comum, é composta por
mulheres.
Apesar de representarem apenas 7% da de todo o sistema prisional, 64%
dos benefícios do auxílio-reclusão são pagos às famílias de mulheres
presas, de acordo com dados do Departamento de Execução Penal (DEPEN)
levantados em 2012.
“A questão de gênero é ocultada nesse discurso, primeiramente por
falar no trabalho e no crime a partir de figuras masculinas: o homem
trabalha, o homem vai preso, a mulher fica em casa desamparada. As
mulheres são responsabilizadas pelo cuidado doméstico e familiar, tanto
na situação de um parente preso como quando elas mesmas estão em
situação de prisão. Não se enxerga que a mulher também trabalha, fora e
dentro do espaço doméstico, e que o benefício do auxílio-reclusão não
tem como sujeito principal o homem preso, mas essa mulher, e seus
familiares”, explica o advogado Anderson Lobo em artigo sobre o tema.
De acordo com levantamento feito pelo ITTC, 70% dessas beneficiárias
são mulheres solteiras que têm filhos, que acabam ficando na dependência
das mães dessas mulheres. O fim do auxílio-reclusão faria com que os
filhos, desamparados, deixassem de receber esses valores e ficassem,
ainda mais suscetíveis à vulnerabilidade e, consequentemente, ao crime.
Não é só no Brasil
Para quem pensa que benefício pago às famílias de presos ou presas
seja como uma jabuticaba, que só dá no Brasil, está enganado. Apesar de
não funcionar nos mesmos moldes, diversos países ao redor do mundo
mantêm certos tipos de auxílios e bolsas para os dependentes do interno
ou da interna do sistema prisional.
Na Inglaterra, por exemplo, a família que é dependente financeira de algum preso ou presa tem direito a uma série de benefícios e subsídios para sobreviver,
sendo que, diferentemente do Brasil, lá os custos são subsidiados pelo
Estado, e não pelo equivalente à contribuição previdenciária.
Caso o dependente tenha filhos do preso ou da presa, por exemplo, este tem direito ao Child Benefit, em português, abono de família.
O que ganhamos com isso?
Tendo em vista que o auxílio-reclusão não é pago pelo contribuinte,
mas sim pelo próprio trabalhador, que o teto do benefício não costuma a
passar de um salário mínimo, que o valor não é multiplicado pelo número
de filhos, que menos de 10% da população carcerária conta com os
valores, que a maioria dos beneficiários é composta por mulheres, que o
valor é pago para famílias dependentes de um preso ou uma presa que
estão em situação de vulnerabilidade, fica a pergunta: quem ganha e quem
perde com um suposto fim do direito constitucional?
Paulo Malvezzi, da Pastoral Carcerária, responde:
“Há uma questão política. O fim desse auxílio significa um retrocesso
dos direitos previdenciários e trabalhistas, por que a pessoa
contribuiu. O fim do benefício não auxilia em nada para que o preso
retorne a sociedade de uma forma minimamente viável para se integrar a
ela. Se ele tem uma família destruída, sem recursos, como trazê-lo de
volta à cidadania? A família é essencial no processo de recuperação. O
fim desse auxílio não trás qualquer benefício, tanto para sociedade
quando para as pessoas presas. É um pseudo-discurso”.
O auxílio-reclusão, por hora, ainda existe, ainda que acompanhado da
alcunha de ódio que circula pelas redes disseminando as mentiras da já
conhecida e moralista “Bolsa Bandido”.
Foto de capa: Rafaela Ely/Creative Commons
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